Tecnologias sociais: entre desafios e avanços na Amazônia

Publicado em: 16 de maio de 2025

Pesquisa do Instituto Mamirauá identifica dificuldades na gestão de tecnologias sociais e aponta necessidade de maior presença dos órgãos públicos em áreas rurais do médio rio Solimões

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Crédito: Bruno Kelly

Um artigo publicado por pesquisadores do Instituto de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá investiga os desafios de gestão de duas tecnologias sociais voltadas à melhoria do acesso a serviços públicos em comunidades ribeirinhas do médio rio Solimões, no estado do Amazonas. Intitulado “Desafios na Gestão de Tecnologias Sociais para Prestação de Serviços Públicos na Amazônia”, o estudo é assinado por Luiz Francisco Loureiro, Dávila Suelen Souza Corrêa, Rafaela Dias Lopes e Maria Cecilia Rosinski Lima Gomes, e concentra-se nas experiências com o Sistema de Bombeamento e Abastecimento de Água com Energia Solar (SBAAES) e os Sistemas Fotovoltaicos Domiciliares (SFDs). 

Com base em conceitos como bens comuns, capital social comunitário e ação coletiva, os autores analisam como essas tecnologias são apropriadas pelas comunidades e os obstáculos enfrentados para sua gestão ao longo do tempo. O estudo mostra que a apropriação das tecnologias sociais não ocorre de forma uniforme, sendo influenciada por fatores como cultura local, organização social e tipo de tecnologia. Os SFDs, por exemplo, apresentaram maior adesão, por se integrarem mais facilmente à rotina doméstica e individual. Já o SBAAES, de uso coletivo, demandou mudanças culturais e enfrentou maior resistência. 

Além da participação comunitária, o artigo reforça o papel decisivo do poder público e das concessionárias de serviços na manutenção e sustentabilidade dessas tecnologias. 

Tecnologia social e cultura coletiva

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Crédito: Amanda Lelis

Os pesquisadores observaram que os Sistemas Fotovoltaicos Domiciliares foram mais bem assimilados pelos usuários da tecnologia por permitirem uso individual e gestão híbrida, com tarefas divididas entre os indivíduos e o coletivo. Já o sistema coletivo de abastecimento de água, mesmo sendo planejado para ser de operação simples, enfrentou obstáculos por exigir uma mudança significativa no modo tradicional de coleta da água, feita por domicílio 

Esse contraste expõe a importância de compreender o contexto sociocultural de cada comunidade antes de implementar uma nova tecnologia. A familiaridade prévia com sistemas elétricos, por exemplo, contribuiu para a rápida aceitação dos Sistemas Fotovoltaicos Domiciliares (SFDs). Já no caso do Sistema de Bombeamento e Abastecimento de Água com Energia Solar (SBAAES), a exigência de ações coletivas - como a divisão de tarefas e responsabilidades - apresentou um desafio maior, especialmente onde há menor capital social comunitário.

"Nossa pesquisa mostra que não basta disponibilizar a tecnologia: é preciso trabalhar processos educativos e fortalecer a organização social local, para que essas inovações façam sentido no cotidiano das comunidades", afirma Luiz Loureiro, pesquisador do Instituto Mamirauá e primeiro autor do artigo.

Nesse contexto, o Instituto Mamirauá tem se empenhado em trabalhar diretamente com as comunidades, buscando compreender suas particularidades e promovendo um processo de aprendizado mútuo. O instituto tem investido no fortalecimento do capital social, incentivando o diálogo entre os moradores, líderes locais e outros atores da sociedade civil. Por meio de uma abordagem participativa, o Instituto tem criado oportunidades para que as comunidades se apropriem das tecnologias de forma mais eficaz, ajustando as soluções às suas realidades e estudando modelos de gestão que sejam sustentáveis a longo prazo. 

A pesquisa ressalta que a reaplicação tecnologias sociais precisa ser acompanhada por ações educativas e de mobilização comunitária, que ajudem a fortalecer vínculos e promover uma gestão mais coletiva e sustentável.

Para a coordenadora do Programa Qualidade de Vida (PQV) do Instituto Mamirauá e pesquisadora Maria Cecília Gomes, coautora do estudo, é fundamental que esses dois elementos caminhem juntos: "Precisamos das duas frentes de trabalho - a atuação das instituições, pois muitas têm responsabilidade legal sobre temas como água e energia, mas também o fortalecimento da organização local, que tem participação social e gestão compartilhada".

Tecnologias que transformam o cotidiano

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Crédito: Bruno Kelly

Além dos casos analisados, o artigo se insere no conjunto mais amplo de iniciativas do Instituto Mamirauá com foco em tecnologias sociais voltadas à melhoria da qualidade de vida em comunidades amazônicas. Atualmente, o Instituto Mamirauá desenvolve ou já finalizou nove experiências nesse campo, todas baseadas em soluções técnicas criadas ou adaptadas para contextos ribeirinhos. 

Essas tecnologias se dividem em dois grandes grupos: aquelas que buscam o fortalecimento econômico — como o Cevaciclo (tecnologia sustentável de ceva de mandioca para produção de farinha), os Fogões Ecológicos e a Máquina de Gelo Solar — e as voltadas para serviços públicos, como o Sistema de Bombeamento e Abastecimento de Água com Energia Solar, os Sistemas Fotovoltaicos Domiciliares e os Sanitários Adaptados às Áreas Alagáveis. 

Essas soluções não apenas oferecem caminhos alternativos para enfrentar problemas históricos da região — como a falta de saneamento e energia elétrica — como também reforçam a autonomia das comunidades e a preservação dos recursos naturais.

Poder público é peça-chave na sustentabilidade

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Crédito: Bruno Kelly

O artigo também destaca que, para além da adesão comunitária, a continuidade e expansão dessas tecnologias dependem de uma gestão compartilhada. A participação de prefeituras, concessionárias e outras instituições públicas é essencial para garantir, por exemplo, acesso a peças de reposição, manutenção qualificada e recursos financeiros.

“O poder público precisa estar presente de maneira mais consistente, com políticas que reconheçam a importância dessas tecnologias para o acesso a direitos básicos”, defende Loureiro. “Sem esse suporte, a sustentabilidade das ações fica comprometida e a carga recai desproporcionalmente sobre as comunidades.” 

Nesse ponto, Cecília Gomes complementa: “No caso de abastecimento de água, por exemplo, é necessário que a prefeitura institucionalize o sistema de gestão que for adotado, em acordo com as comunidades. Esse arranjo precisa ser formalizado, para que cada um faça seu papel”. 

Além de viabilizar o acesso a recursos, o envolvimento do poder público é crucial na gestão financeira das iniciativas — desde a orientação para o uso adequado dos fundos arrecadados até o apoio na organização de processos burocráticos, como a abertura e movimentação de contas bancárias comunitárias. A ausência desse suporte pode gerar entraves administrativos, dificultando a autonomia local e comprometendo a sustentabilidade das tecnologias. 

Problemas como a fragilidade dos fundos comunitários para reposição de equipamentos e a dependência de apoio externo podem comprometer a continuidade das ações. Sem o apoio estatal, especialmente no nível municipal, enfraquece-se o caráter público dos serviços a que essas tecnologias dão suporte. 

Nesse sentido, os autores defendem arranjos de gestão colaborativa, nos quais os diversos atores — comunidades, Estado e organizações parceiras — dividam responsabilidades técnicas, financeiras e administrativas, assegurando a sustentabilidade e expansão das tecnologias. 

Próximos passos: aprender com outras experiências

Para avançar, os pesquisadores recomendam novas investigações em campo para verificar o estado atual das tecnologias implementadas e propõem o estudo de casos comparáveis em outros países latino-americanos. A ideia é reunir um repertório de experiências que permita desenvolver modelos de gestão mais eficazes e adaptados à realidade amazônica. 

Crédito: Bruno Kelly

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