O Instituto Mamirauá, através do projeto Entre Águas Amazônicas, realizou, entre 24 e 29 de novembro, a 4ª edição do Curso de Multiplicadores em Manejo Comunitário de Jacarés, capacitando representantes de associações e instituições da Amazônia para fortalecer o manejo sustentável da espécie em Unidades de Conservação. Reuniu representantes de associações e instituições parceiras, dentre elas, acordos de pesca, Agência de Defesa Agropecuária e Florestal do Estado do Amazonas (ADAF), ICMBio, Secretaria Municipal de Meio Ambiente e Limpeza Pública de Tefé e Ibama.
O curso integra o projeto Entre Águas Amazônicas, executado pelo Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI), com a cooperação da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) e o Instituto Mamirauá . O financiamento provém do Fundo Global para o Meio Ambiente (GEF).
A iniciativa reforça os esforços do Instituto Mamirauá e parceiros em fortalecer o manejo e a conservação da fauna silvestre da Amazônia, além de formar multiplicadores capazes de apoiar grupos comunitários no uso sustentável dos recursos naturais. O curso, que teve sua primeira edição em 2019, surgiu como resposta à demanda do Grupo de Trabalho Estadual de Manejo de Jacaré.

Integração entre teoria, campo e conhecimento tradicional
O curso foi dividido em duas etapas: uma fase teórica, realizada na sede do Instituto Mamirauá, e uma fase prática, desenvolvida na Reserva de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá, no setor Jarauá. Ao longo de uma semana, os participantes estudaram ecologia de crocodilianos, fundamentos sanitários, sistemas de manejo, monitoramento por geotecnologias, estimativa populacional e cadeias produtivas. Em campo, acompanharam contagens noturnas, monitoramento de ninhos, captura de fêmeas e a visita ao abatedouro flutuante PLANTAR, o primeiro flutuante de abate de jacarés licenciado do Brasil.
O curso também integra a experiência técnica do Instituto Mamirauá aos saberes tradicionais de comunitários que, há anos, contribuem para o desenvolvimento participativo do manejo de jacaré no Médio Solimões.
João da Silva Carvalho, o João Jacaré, ex-morador da comunidade Vila Alencar e Assistente de Pesquisa no Instituto Mamirauá desde 1996, compartilhou com os alunos parte do conhecimento acumulado em décadas de trabalho: “Eu trabalho como assistente de pesquisa no Instituto Mamirauá. Participei do primeiro curso até hoje, no quarto curso. Sempre coloco minha experiência de trabalho, o que aprendi no dia a dia, e hoje estou passando para meus colegas e para quem vem de fora conhecer como é o trabalho da comunidade.”
Da comunidade São Raimundo do Jarauá, Josué de Castro, que participa do manejo de jacarés há anos, destacou que sua trajetória na atividade é também a continuidade de um legado familiar:“Tudo o que eu sei hoje no manejo veio do meu pai. Ele não chegou a trabalhar diretamente com jacaré, mas sempre incentivou os filhos, principalmente eu, porque eu gostava de participar. Não tive oportunidade de estudar, porque precisei ajudar meus pais e cuidar dos meus irmãos, mas o conhecimento que ele me deixou vale muito. Ele sempre dizia que sonhava em ver o manejo de jacaré dar certo. Antes de falecer, me pediu para continuar lutando por isso. A gente correu atrás, e hoje estamos vendo acontecer. Sou o único dos meus irmãos com certificado de contador de jacaré, e faço questão de estar presente, mesmo quando é voluntário. O importante é contribuir para que esse trabalho avance. Para mim, é gratificante manter vivo esse legado e apoiar as pessoas no que for preciso.”
Segundo Fernanda Pereira Silva, analista de Pesquisa e Desenvolvimento do Instituto Mamirauá, a estrutura do curso foi pensada justamente para conectar teoria e prática: “A gente discute as técnicas de monitoramento no Instituto e depois traz os alunos para o campo”, explica. “Aqui, fazemos as três principais técnicas de levantamento populacional: a contagem noturna, a contagem dos ninhos e a captura de fêmeas, mostrando como coletamos dados biométricos, avaliamos o estado de saúde e analisamos a fertilidade dos ninhos.”
Ela reforça que os dados obtidos são essenciais para as decisões de manejo: “Com essas informações, conseguimos ter um panorama biológico completo e definir estratégias de conservação para a espécie.”

Manejo como conservação, renda e segurança alimentar
O modelo de manejo de jacarés adotado na RDS Mamirauá e assessorado pelo Instituto Mamirauá é o manejo extensivo (harvesting), que se baseia na retirada controlada das duas espécies mais abundantes da região: o jacaré-açu e o jacaretinga. É o sistema mais adequado para a realidade local pela abundância de jacarés e histórico local de exploração e, de acordo com a legislação, só pode ocorrer dentro de Unidades de Conservação e ser conduzido pelas comunidades que vivem nesses territórios.
Ao organizar a atividade dentro de regras claras, monitoramento contínuo e participação comunitária, o manejo extensivo reduz a pressão da caça ilegal, ajuda a conservar ecossistemas sensíveis, fortalece cadeias produtivas locais e gera renda de forma sustentável. Para as comunidades, isso se traduz em acesso a uma fonte de renda, valorização do conhecimento tradicional e maior autonomia sobre os recursos do território, além de garantir uma melhoria sobre a segurança alimentar ao disponibilizar proteína de qualidade para consumo local.
Para James Bessa, analista ambiental do Ibama, o uso sustentável dos recursos naturais é central para unir conservação e desenvolvimento: “O manejo de pirarucu ajudou a recuperar outras espécies, inclusive os jacarés, que hoje voltam a ter populações grandes e podem ser utilizadas como forma de renda”, afirma. “Ele garante segurança alimentar e permite que as pessoas permaneçam em suas comunidades, sem precisar ir para a capital atrás de emprego.”
Ele explica que o envolvimento do Ibama no curso fortalece o processo de autorização: “Participar do curso permite entender o planejamento e dar mais segurança às autorizações. Isso melhora a avaliação dos projetos apresentados para abate de jacaré.” James aponta ainda os principais desafios para expansão da atividade: “A legislação já tem mais de dez anos e precisa ser revisada. A logística é um entrave, porque hoje o jacaré precisa ser levado vivo até a unidade de abate. E ainda falta incentivo para desenvolver o mercado e reduzir os custos do licenciamento.”
Diogo de Lima Franco, coordenador do Programa de Manejo de Fauna do Instituto Mamirauá, reforça que viabilizar o manejo exige superar entraves estruturais: “Para implementar, desenvolver e estruturar os sistemas de manejo, enfrentamos dificuldades que vão desde a complexidade da legislação até a necessidade de recursos financeiros para realizar o monitoramento básico. Também é desafiadora a articulação entre todos os atores envolvidos, órgãos de licenciamento, associações comunitárias, instituições de apoio e financiamento. São muitos atores, e nem sempre é simples garantir uma comunicação eficiente entre eles. Por isso, o curso, além de capacitar, é uma oportunidade para dialogar, alinhar e discutir com todos que influenciam direta ou indiretamente o desenvolvimento da cadeia.”

Avanço recente para o manejo na região
Dias antes da realização do curso, o Governo do Amazonas concedeu a dispensa de licenciamento ambiental para o PLANTAR, a estrutura flutuante de abate idealizada pelo Instituto Mamirauá. A estrutura integra a etapa final do manejo e permite com que a carne saia do local em condições adequadas para consumo e para a comercialização.
O Amazonas é o único estado brasileiro com legislação específica para o abate de jacarés e referência nacional em manejo comunitário de fauna. Embora essa legislação ainda necessite de revisão e atualização, sua própria existência demonstra que há demanda social e institucional pelo manejo e indica um cenário promissor para o avanço da atividade. Nesse contexto, o Instituto Mamirauá assessora os setores Jarauá e Aranapu da Reserva Mamirauá, envolvendo seis comunidades em monitoramento, definição de cotas e execução das etapas do manejo. A recente classificação da estrutura flutuante de abate como estabelecimento de potencial poluidor reduzido, um enquadramento inédito no país, representa um passo decisivo para fortalecer esse modelo. Em 2020, o PLANTAR foi utilizado no primeiro abate em atendimento a legislação estadual, mas a nova dispensa estadual cria as condições para a regularização mais viável, e para a continuidade das atividades de forma constante e estruturada.
A 4ª edição do Curso de Multiplicadores consolida um modelo que combina ciência, participação comunitária, políticas públicas e o fortalecimento proporcionado pelo projeto Entre Águas Amazônicas.

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