Instituições realizam escavação arqueológica para identificar relação entre sociedades indÃgenas
Publicado em: 28 de outubro de 2016
Em uma pequena área cavada na terra, de dois metros por um, dois pesquisadores trabalham. Com uma pequena colher, dessas que se usa em construções civis, eles raspam delicadamente as partes da unidade - como é chamada a área de escavação - retirando pouco a pouco a terra que está ali. Quem pode imaginar o que estaria escondido por baixo da terra? Por horas, sob o sol escaldante do Amazonas e entre os insistentes mosquitos que os cercam, os pesquisadores se ajeitam para realizar o trabalho, tentando não atrapalhar um ao outro e com cuidado para não encostar nas paredes ou desmanchar as formas já descobertas na terra.
A cena descrita aconteceu no último mês. Mais de dez pessoas, cerca de um mês em atividade de campo e muitos vestÃgios arqueológicos coletados para análise. A equipe de pesquisa se dedicou à escavação no sÃtio arqueológico localizado próximo a uma comunidade ribeirinha, na foz do Lago Caiambé, zona rural do município de Tefé (AM). O trabalho foi realizado por uma equipe de diferentes instituições, parceria entre os pesquisadores do Instituto Mamirauá, da Universidade Federal do Sergipe (UFS), do Museu de Etnologia e Arqueologia da Universidade de São Paulo (MAE-USP) e da Universidade do Estado do Amazonas (UEA), por meio do Centro de Estudos Superiores de Tefé (Cest).
A escavação faz parte de uma pesquisa que busca desvendar a história da ocupação humana na região, antes da chegada dos colonizadores. A área estudada possui uma diversidade de vestÃgios arqueológicos cerâmicos, produzidos por populações indÃgenas na antiguidade. Nessa pesquisa, Rafael de Almeida Lopes, mestrando da UFS, investiga duas tradições culturais de produção cerâmica tradicionalmente encontradas na região do Médio Solimões. "Buscamos entender como se deu a presença dessas populações que produziram as cerâmicas arqueológicas que encontramos aqui, tanto as cerâmicas da Tradição Borda Incisa quanto da Tradição Polícroma", explicou Rafael.
De acordo com o pesquisador, a hipótese é que populações de diferentes aldeias, que produziam cerâmicas com técnicas e metodologias distintas, estavamse relacionando. "Acreditamos que haja a presença de material da Tradição Borda Incisa junto com material da Tradição Policroma, o que sugere que talvez essas pessoas estavam trocando as cerâmicas ou fazendo rituais juntos, ou se vinculando por relações de casamentos, coisas do gênero", disse o pesquisador.
No sÃtio arqueológico foram escavadas três unidades de 1 a 2m². Ao longo do trabalho, os arqueólogos escavam aprofundando nÃvel a nÃvel, até que os vestÃgios já não sejam mais encontrados. O arqueólogo do Instituto Mamirauá, unidade de pesquisa do Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações, Eduardo Kazuo Tamanaha, descreve que esse trabalho busca recuperar os vestÃgios deixados pelas sociedades do passado. "Esses vestÃgios, quando estavam inteiros ou eram utilizados por alguém, representaram uma cultura, um momento da história. Basicamente, aquele antigo utensÃlio serviu a algum propósito na sociedade. E nós, arqueólogos, tentamos reconstruir essa história antiga através desses objetos e seu contexto", contou.
Além das cerâmicas encontradas pelos arqueólogos nas unidades, que muitas vezes estão divididas em pequenos fragmentos, durante a escavação, também foram coletados materiais associados às peças, como terra preta de Ãndio e outros fragmentos que podem ser pedaços de pedra, carvão ou ossos. Todo esse material será triado e analisado em laboratório e ajudará a identificar o contexto em que as peças foram utilizadas. Se eram utensÃlios para produção de alimentos ou utilizados em algum ritual funerário, por exemplo. Uma parte das amostras também irá passar por um processo de datação, para identificação do perÃodo de ocupação da região.
"O que estamos trabalhando é a história de longa duração dessas populações. A gente pode ter uma ideia, por meio da cerâmica, de algumas transformações e continuidades ao longo do tempo. Como todas as populações humanas, apesar de terem muita continuidade, elas tinham seu dinamismo. A própria produção de terra preta é interessante, esse é um processo que a gente acredita que é gradual, ao longo do tempo. Mas, se a gente tem indÃcios dessa ocupação antes da terra preta, por exemplo, a gente pode pensar qual foi o momento em que a forma de manejo de paisagem começou a gerar essa terra preta, com grande quantidade de carvão, etc.", comentou Rafael.
A terra preta de Ãndio é muito encontrada no território amazônico e está vinculada às antigas ocupações indÃgenas da região. Esse tipo de terra, muito fértil, é formado por um aglomerado de grande produção e descarte de matéria orgânica nesses locais. Nesse substrato, normalmente, também é encontrado muito material carbonizado que, ao ser analisado, ajuda na compreensão do tipo de madeira e frutas que eram consumidos pelos indÃgenas naquele perÃodo, entre outras coisas.
Rafael explica que o trabalho ajuda a pensar como essas populações estavam lidando tanto com o ambiente natural, quanto com o contexto social em que elas viviam. "Quando estudamos história, ainda estudamos muito da história europeia. Nós estamos buscando compreender a história indÃgena pré-colonial e valorizar isso dentro da realidade nacional atual. Como essas populações lidavam umas com as outras, antes do contato com os europeus? Quais as formas criativas que elas tinham para lidar tanto com o ambiente, quanto com os problemas sociais internos a elas? ", completou o pesquisador.
A área não foi escolhida pelos arqueólogos aleatoriamente. Entre as décadas de 1950 e 1960, o arqueólogo alemão Peter Hilbert realizou uma expedição por grande parte da Amazônia em busca de vestÃgios arqueológicos na região. Entre essas áreas visitadas, estava a região do lago Caiambé. De acordo com Eduardo Kazuo, os vestÃgios encontrados por Hilbert naquela região e na cidade de Tefé eram diferentes de outras áreas e, por isso, acabaram definindo duas antigas expressões culturais do Médio Solimões nomeadas de: fase Caiambé e Tefé, dois conjuntos cerâmicos regionais que fazem parte da Tradição Borda Incisa e Tradição Polícroma, respectivamente.
Eduardo Kazuo ressalta que Hilbert foi um dos pioneiros a estudar a bacia do rio Solimões. "Peter Hilbert foi o primeiro arqueólogo que fez uma pesquisa sistemática na região. Antes dele, somente alguns pesquisadores, exploradores e viajantes relatavam sobre os vestÃgios das antigas aldeias indÃgenas. Então, ele teve um papel importante por inserir o Médio Solimões na arqueologia mundial", afirmou o pesquisador.
De acordo com Eduardo, a nova geração de arqueólogos tem se esforçado para revisitar os sÃtios identificados por Hilbert e outros arqueólogos de sua geração. "Queremos ampliar as escavações, responder algumas perguntas levantadas por esses pioneiros, criticar algumas questões respondidas por eles, etc. A ideia é refinar a informação e preencher lacunas", completou.
A vegetação de ontem e de hoje
Paralelas às coletas de vestÃgios arqueológicos, também foi realizada uma coleta de espécies vegetais que cercam as unidades de escavação e que ocorrem dentro e ao redor do sÃtio. A arqueóloga do Instituto Mamirauá, Mariana Cassino, participou das atividades de campo e é uma das responsáveis pela análise das amostras em laboratório. "As coletas botânicas se encaixam muito dentro dos trabalhos que têm sido feitos nas áreas de Ecologia Humana e Ecologia Histórica sobre a ocorrência de florestas antropogênicas na Amazônia. Existem muitos estudos que falam sobre isso, mas é muito raro que sejam feitos em concomitância com escavações de sÃtios arqueológicos", comentou a pesquisadora.
As coletas botânicas subsidiam as análises dos vestÃgios arqueológicos. As amostras de carvão coletadas nas unidades serão analisadas e identificadas em laboratório pelos pesquisadores. "Tem muito carvão proveniente de plantas que estavam sendo utilizadas pelas populações na época. Com a coleta botânica, identificamos as concentrações de plantas úteis existentes hoje. O que nós queremos é cruzar esses dados com as nossas análises do carvão arqueológico. Ou seja, será que encontraremos essas espécies, que detectamos hoje, também no registro arqueológico? ", questionou Mariana.
Essa ação conta com o apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento CientÃfico e Tecnológico (CNPq) para o pagamento de bolsa de estudo.
O que já sabemos
As tradições são nomenclaturas das quais são identificadas as cerâmicas arqueológicas que possuem caracterÃsticas similares, tais como forma, decoração, cores, matéria prima e idade. Os pesquisadores acreditam que essas similaridades podem ser indicativas de identidade de uma ou outra cultura indÃgena.
As cerâmicas da Tradição Borda Incisa ocorreram possivelmente em toda região do médio Solimões e o perÃodo de ocupação das populações que produziam esse tipo de material é estimado pelos pesquisadores entre 700 e 1000 d.C.. As aldeias possuÃam locais destinados exclusivamente para enterrar os mortos em urnas funerárias. E nas áreas onde são encontrados esses vestÃgios, há grande concentração de terra preta. De acordo com Rafael, a cerâmica dessa tradição está associada às populações que falavam lÃngua Aruaque. "São populações caracterizadas por fazerem redes multiétnicas, estavam em contato com outras populações e trocavam materiais, o que é uma análise interessante", disse. Outra caracterÃstica interessante é que parte dessas cerâmicas possuem decorações que imitam a forma de animais como tartarugas, pássaros e até macacos
Já as cerâmicas da Tradição Polícroma são associadas até um perÃodo de ocupação mais recente, após o contato dessas populações indÃgenas com os colonizadores. Já foram datados vestÃgios entre 500 até 1.700 d.C.. As cerâmicas são caracterizadas por decorações em pintura vermelha e preta sobre argila branca. E alguns arqueólogos acreditam que esse material possa estar associado à dispersão de populações que se comunicavam em lÃngua Tupi. Alguns vestÃgios encontrados associados a essa tradição eram urnas funerárias com decoração antropomorfa, com rostos de animais sobre a cabeça, como as urnas encontradas na região de Tefé há dois anos. "O que essas urnas do Tauary ajudam a pensar é que existe alguma essência xamanÃstica desses personagens", comentou Rafael.
Veja o vÃdeo:
Texto: Amanda Lelis
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